A referência do som digital no passado distante

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Eu fiz parte de um grupo na década de 1980 que se reunia às sextas-feiras em torno do áudio e da música, entre outros assuntos de interesse comum. Na época, abraçamos o CD como a principal mídia de reprodução e buscamos equipamentos que pudessem fazer juz à qualidade obtida.

 

Foi mais ou menos no meio da década de 1980 que eu ia ocasionalmente até a loja da Gramophone que ficava ali na Rua Sete de Setembro, centro da cidade, lá pela hora do almoço. Com a loja habitualmente entupida neste horário do pessoal que trabalhava perto, geralmente com as mesmas pessoas, teria sido inevitável a troca de opiniões e a abordagem pessoal entre todos.

E foi assim que eu conheci o Fernando Blanco, amigo que perdi no ano passado, e com quem fiz uma amizade em torno da eletrônica e do áudio, em curto espaço de tempo. Um belo dia ele me convidou para ir na casa dele, e dentro da maior cerimônia, eu cheguei lá para ouvir um belíssimo equipamento de áudio, parcialmente projetado por ele mesmo. O Fernando foi uma daquelas raras pessoas dotadas de um ouvido privilegiado para áudio. Se ele se entusiasmasse por algum daqueles equipamentos, eu poderia ter certeza de que era de altíssimo nível de qualidade.

E não tardou muito, até que o Fernando conhecesse o Ferreira, executivo de vendas da Estanífera do Brasil, que nós depois chamávamos carinhosamente de Ferreirinha. E com isso, tornou-se um hábito que durou anos, de eu passar pela casa do Fernando às sextas-feiras, lá pelo fim da tarde, ouvir música, ver as novidades, e de lá, mais tarde, sair para a casa do Ferreira, repetindo tudo, um papo super animado, que durava até próximo da madrugada.

Em torno de nós três, juntaram-se outros e fizemos um grupo em torno de interesses comuns, inicialmente pautado no áudio e na música, e depois nos concertos em vídeo, por causa da presença do Laserdisc, que, em um dado momento, passou a oferecer som digital de excelente qualidade.

O escopo de interesse recíproco aumentou mais ainda quando eu comecei a me envolver com a programação do microcomputador MSX e compartilhei os meus achados com os outros. O Marquinhos, filho do Ferreira, ainda estudante, embarcou na informática, como nós, de modo a ajudar o processamento de dados no ambiente de trabalho. Como eu já reunia uma certa experiência nisso, acabei me tornando a pessoa que dava conselhos para a montagem dos respectivos home offices. Em suma, era um ambiente dos melhores, que juntava o entusiasmo de todos e a troca saudável de ideias a respeito de qualquer assunto de interesse do grupo.

A Gramophone começou com uma loja no Shopping da Gávea, frequentada principalmente por audiófilos, em função da sua importação de discos. E em preços, ela ainda batia a Modern Sound, cujo dono fazia questão de só vender mídia para a elite financeira. O Milton (nunca soube o sobrenome dele), dono da Gramophone, super simpático, interagia com os clientes dentro da loja, e oferecia poltronas para quem quisesse estacionar por lá. Tempos depois, ele abriu uma filial no centro da cidade, e foi isso, em última análise, que aumentou o seu volume de vendas. A Gramophone foi a primeira loja que comercializou CDs no comércio de rua carioca. Antes disso, a loja da Gávea era especializada em elepês de audiófilos.

Som novo, novas referências e mudança de paradigmas

Quem saiu do vinil e deu de cara com o CD percebeu logo que as injúrias e desqualificações de alguns audiófilos, despejadas na direção da nova mídia, guardava um ranço de preconceito injustificado, fruto de críticas apressadas e sem base.

Mas, a nossa turma, que, diga-se de passagem, nunca foi de embarcar no tradicional “ôba-ôba” com qualquer novidade, abraçou o CD de cabeça aberta, e foi por causa disso que novos paradigmas de audição de música puderam ser estabelecidos entre nós.

Quem não viveu esta época e em particular aquele momento jamais terá noção da quantidade absurda de CDs, particularmente os de selos europeus de música erudita, que eram autorados com imenso capricho.

E em curto espaço de tempo todos nós percebemos o óbvio: de que não fazia sentido, principalmente na reprodução correta de música clássica, se usar equipamentos de áudio que não atendessem ao aumento de dinâmica e ausência de ruído do CD, que eram calcanhares de Aquiles típicos da reprodução analógica.

E eu tento explicar por que: basicamente, a reprodução de áudio mais próxima do ideal exige fonte de alimentação adequada, com resposta imediata da fonte e da saída durante a reprodução de transientes. Além disso, pede a instalação de caixas acústicas capazes de responder ao que era exigido delas sem aumentar a distorção. Um quesito desses que nos calou fundo durante anos foi a eliminação da chamada distorção harmônica, uma praga que acompanhava audiófilos desde a época dos amplificadores a válvula.

Na reprodução de um CD, quanto menor for a distorção introduzida pelo sistema, melhor será a qualidade do sinal obtido. Como nem todo mundo tem instrumentos em casa capazes de medir distorção, a saída será sempre apurar os ouvidos e prestar atenção na música reproduzida. Foi o que fizemos naquela época!

E para que tal fosse possível todos nós adquirimos o hábito de selecionar discos que demonstrassem o que cada equipamento seria capaz de atingir. Fora a modificação de DACs (Digital to Analogue Converters), que só foi atingida após a década de 1990, o resto das preocupações iniciais com a reprodução do sinal digital ficou restrita ao lado da saída analógica dos reprodutores de mesa.

Eventualmente, selos como Telarc, DMP, Erato, Hungaroton, e muitos outros, foram usados para avaliação auditiva, na procura da melhor qualidade de reprodução possível.

A saga da DMP

A DMP (Digital Music Products) é um capítulo à parte nesta estória: fundada por Tom Jung na década de 1980, que dedicou-se ao aperfeiçoamento da captura e reprodução de som digital, tornando-o assim pioneiro neste segmento de mercado.

Em uma entrevista à revista Stereophile, publicada no final da década de 1990, Tom Jung conta que iniciou a sua trajetória no ambiente analógico, trabalhando como técnico de corte de acetato. Mais tarde, se aventurou na elaboração de edições de elepês de corte direto, moda da década de 1970.

Eventualmente, a 3M mostrou a ele o protótipo do que iria ser um dos primeiros gravadores digitais profissionais disponíveis para os estúdios. A nova mídia chamou a atenção de Tom Jung, devido à ausência de variações de velocidade de transporte, como wow e flutter, além da total ausência de ruído de fundo.

Jung iniciou a DMP equipando o estúdio com o lendário Mitsubish X-80, gravador digital de fita magnética:

 

O gravador X-80 opera com amostragem de 50.4 kHz. Para transferir o som original para CD (44.1 kHz), ele usou um conversor Studer SFC-16, com algoritmo DADC, isto é, o som gravado é primeiro convertido a analógico (DA) e reconvertido a digital (DC) na frequência de amostragem desejada, no caso 44.1 kHz, usada na master do CD.

Dois dos CDs que a nossa turma costumava usar para a referência de dinâmica e fidelidade de reprodução foram Salamander Pie (lançado depois em SACD), com Jay Leonhart no contrabaixo e vocal, acompanhado de Mike Renzi no piano, e Lighthouse, com Billy Barber, executando suas peças com a ajuda de sintetizadores em rede MIDI e piano de cauda:

 

A gravação era direta em dois canais, com equipamento auxiliar todo em Classe A com componentes discretos. Como o selo se especializou na gravação de grupos de Jazz, Jung desprezou o uso minimalista no processo de captura, que consiste em um único microfone estéreo ou dois microfones em arranjo Blumlein.

Esses CDs da DMP (eu ainda tenho vários deles) soavam e soam até hoje muito bem, com uma clareza e com uma dinâmica que nenhum de nós conseguia obter de fontes analógicas.

Ao longo do tempo, e com o aperfeiçoamento dos circuitos de decodificação digital-analógico, é possível perceber a qualidade original do som capturado na década de 1980. Antes que a DMP acabasse, Jung ainda advogou a evolução para DSD e para o SACD, ao mesmo tempo em que somente aprovou PCM do DVD-Audio com ressalvas.

In memoriam

Eu tenho muita saudade daquelas reuniões das sextas-feiras. Eu saí do país em 1990 para estudar e fazer o meu doutorado. A turma que ficou aqui me mandou um vídeo em fita VHS, com a música dos Cariocas ao fundo, e brincando comigo dizendo que o MSX tinha cedido lugar a um notebook. Na época, o Fernando já tinha montado um 80286. Lá fora, entretanto, o desaparecimento dos micros de 8 bits já era uma realidade, e assim eu já estava usando em casa um 80386 e no trabalho novos equipamentos 80486 foram adquiridos. Por causa disso, nada daquilo para mim era novidade, mas a gozação foi aceita sem restrições. Afinal, todos nós depois concordamos que o MSX foi uma escola, uma etapa de aprendizado importante!

Na minha volta, infelizmente, o ambiente não era mais o mesmo, e eu acabei me afastando. Gozado é que a década de 1980 foi dura para mim, em todos os sentidos, mas na minha volta às dificuldades de vida pessoal e profissional continuavam enormes e duras de enfrentar, sem o escapismo das noites de sexta-feira. O grupo se encontrava ocasionalmente, o espirito da reunião estava longe de ser o mesmo.

Em anos subsequentes aconteceu a perda de vários amigos daquele grupo, independente do meu afastamento. O nosso bom Ferreirinha se aposentou, teve a saúde agravada e depois faleceu, e eu só fiquei sabendo algum tempo depois. Dois outros, um deles idoso e outro jovem, também morreram. O Fernando, o único com quem eu ainda mantinha contato, e que foi quem iniciou aquelas reuniões de sexta-feira, faleceu no ano passado, e sem que eu soubesse quando e como. Essa foi, talvez, a perda que eu mais senti, porque o nosso contato telefônico era semanal, a respeito de qualquer assunto.

Pois é, a vida é feita de perdas, e a dos entes queridos são aquelas que mais nos atingem! Fica a memória dos primeiros dias do som digital e da importância que ele teve nas nossas vidas de amantes da música e do áudio que nós gostávamos tanto. Outrolado_

. . .

 

O CD mantém a promessa do som perfeito para sempre

A perda de um grande amigo

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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