As nossas vidas nas salas de cinema

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Eu cresci no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, onde foram instaladas um grande número de salas de cinema, propiciando a nós adolescentes momentos de arte com a magia das projeções. Nenhum de nós, naquela época, queria saber como esses filmes eram feitos. Hoje, entretanto, quem se aproveitou do poder da mídia, começou a pagar um preço indesejável.

 

A maioria dos jovens da minha geração, vivendo nos grandes centros ou capitais, tiveram a chance de ir ao cinema toda semana, às vezes mais de uma vez. E no meu caso, além de frequentador regular dos cinemas do bairro, ainda fui o que se costumava chamar de “rato de cinemateca”.

Quem acompanha o que eu escrevo deve se lembrar o texto sobre Cinemas de Rua e Cinemas de Rua com 70 mm, originalmente publicados no Webinsider e republicados aqui.

Eu dei sorte por ter crescido quando os meus pais fixaram residência na Tijuca, bairro do Rio de Janeiro com uma quantidade enorme cinemas, desde “poeiras” até palácios. A maior parte deles localizados na Praça Saens Peña e arredores, ambiente conhecido como “a praça”.

Os cinemas foram: Metro-Tijuca, Tijuca (na época, poeira apelidado de “Tijuquinha”), América, Carioca, Olinda, Rio, Eskye Tijuca (que depois de reformado se tornou apenas Tijuca), Art-Palácio Tijuca, Britânia, Bruni Saens Peña (na Rua Major Ávila), Bruni-Tijuca (bem ao lado do Metro), e mais abaixo Tijuca Palace, Cinema III. Na Rua Haddock Lobo ficavam o magnífico Madrid e o Comodoro, e na Rua Mariz e Barros, o Roma. O Santa Rita ficava bem no Largo da Segunda-Feira e projetava 16 mm. Na Rua Barão de Mesquita, próximo da Praça, ficava o Santo Afonso, também classificado como poeira, mas muito frequentado.

Na minha adolescência, o passeio era pegar o bonde em direção à Praça, saltar por lá e escolher o filme. Foram momentos mágicos, que na minha rua as crianças e adolescentes passavam a dica de que filme valia a pena assistir.

Na febre do 70 mm, quatro cinemas foram equipados com este tipo de aparelhagem: Tijuca, Tijuca Palace, Rio e Bruni Tijuca. Eu tive o privilégio de conhecer o Orion Jardim de Faria, fabricante do Incol 70/35, que me contou detalhes sobre a instalação desses cinemas.

O início da presença de salas de cinema no Rio de Janeiro está muito vem ilustrado no livro Palácios e Poeiras, escrito por Alice Gonzaga (Cinédia), com a colaboração de Hernani Heffner (MAM). A instalação de salas de cinema saindo do centro da cidade e indo para os bairros premiou a Tijuca, que, junto com Copacabana, acabou tendo este expressivo número de salas. O Madrid teria sido a segunda sala de Cinerama no Rio de Janeiro e a mais completa, porém pegou fogo, fechou e nunca mais reabriu. As demolições do Metro-Tijuca e do Madrid foram para mim traumas que eu nunca consegui superar.

Hollywood, seu gigantismo e suas controvérsias

Os maiores fornecedores de películas de cinema se concentraram em Hollywood e arredores. Lá foram realizados os maiores avanços técnicos que o cinema teve. Os grandes estúdios foram montados como se fossem uma fábrica de carros, com uma produção em série que atingia mais de cinquenta filmes por ano.

Montados, em sua maioria, por imigrantes judeus, que se escondiam eles e suas famílias dos maltratos sofridos na Europa, esses estúdios se tornaram uma enorme fonte de dinheiro, quase passando incólume financeiramente durante a grande depressão americana pós quebra da bolsa em 1929.

Esses imigrantes se tornaram magnatas, os salários eram altos, assim como os lucros obtidos nas bilheterias dos cinemas. Louis B. Mayer disse uma vez que o cinema era a única forma de vender caro um produto e ainda ficar com ele.

Mas, para manter o status quo do cinema produzido em Hollywood os estúdios recorreram a todo tipo de patifaria. Os roteiros e as produções eram controlados de forma exorbitante. Os assim chamados “roteiros de ferro”, que perduraram muitos anos, não podiam ser mexidos por ninguém. Além disso, a distribuição de filmes era mafiosa, quando exibidores fora da cadeia dos estúdios queriam alugar os filmes de sucesso para exibição eles eram obrigados a receber um pacote de filmes indesejados.

Histórias e rumores sempre vieram à tona, sublinhando a conduta intimidadora de produtores e chefes de estúdios, os quais, uma vez contrariados, ameaçavam seus empregados de demissão e de nunca mais conseguirem trabalhar em qualquer outro estúdio. Os regimes de trabalho, para se conseguir tamanho número de filmes por ano, eram exaustivos, levando atores e atrizes a crises de saúde, vide Judy Garland ou Marilyn Monroe, que viviam dopadas de pílulas.

Os magnatas do cinema eram oportunistas e achacavam seus empregados. Produtores tinham fama de autoritários, e que recorriam ao assédio sexual em cima de jovens atrizes, para que elas pudessem aparecer em algum filme. A intolerância contra judeus, no entanto, continuou na América, e atingiu em cheio esses magnatas. No filme “Trumbo”, há uma citação explícita a este respeito, quando Hedda Hopper ameaça Louis B. Mayer de expor o seu nome judeu em público.

Um caso recente que expõe a conduta de assédio sexual dos produtores veio à baila com o caso do produtor Harvey Weinstein, que acabou condenado a 23 anos de prisão. Weinstein e seu irmão fundaram a Miramax, estúdio independente que produziu bons filmes durante um longo período de tempo. O estúdio, que era mais exatamente uma produtora de cinema, acabou sendo vendido, bem antes de Weinstein ser condenado.

Harvey era um produtor típico da antiga Hollywood, super poderoso, intimidador e até grosseiro com seus subordinados. As denúncias contra ele foram repetidas, mas um tempo enorme se passou até que ele ficasse à mercê das garras da justiça americana. O produtor vivia cercado de uma turma de advogados, que sempre forçavam acordos com as vítimas, que eram obrigadas a assinar um contrato de confidencialidade em torno da indenização.

Já repararam que, quando um indivíduo poderoso é apanhado em flagrante e é processado, ele fica imediatamente doente e incapacitado? Aqui no Brasil a gente viu isso na mídia várias vezes. Pois bem: eis aí a imagem do super magnata Weinstein, às beiras do seu julgamento, se apoiando em um andador:

 

Na Hollywood antiga muitas atrizes sofreram com este tipo de abuso, mas não conseguiram ou não tiveram coragem de peitar seus algozes. O fato, entretanto, foi citado na mesma cena onde Hedda Hopper confronta Louis B. Mayer. Os tempos mudam e quem ficava impune não fica mais, merecidamente!

Em nome do cinema, todo mundo esquece tudo isso

Existe um princípio conhecido na indústria do cinema que os filmes precisam dar lucro para se poder filmar as demais produções. Isso a gente entende, mas nada justifica usar a indústria para construir fortunas, ameaçar pessoas, intimidar e ditar regras de conduta, como se fez muito em Hollywood. Na Europa, a situação poderia até ser parecida, mas prevaleceram o lado criador e a sinceridade dos cineastas, fazendo o que foi depois classificado como “cinema de arte”.

Apesar disso, quanta coisa boa em entretenimento veio dos estúdios americanos, fruto não só dos avanços técnicos como artísticos. E qualquer um cinéfilo assiste um daqueles filmes sem se incomodar com o lado absurdo dos roteiros. Um dos professores de cinema nos dizia, e com razão, que a gente tinha que ver de tudo.

Roteiros em princípio inaceitáveis às vezes são suplantados por outros méritos. Basta citar “Silk Stockings” (no Brasil, “Meias de Seda”), musical da M-G-M de 1957, rodado no então novo processo CinemaScope e com som estereofônico. No roteiro há inclusive uma menção sobre isso, na música de Cole Porter “Stereophonic Sound”:

 

 

Em Meias de Seda, o produtor de Hollywood Steve Canfield seduz a emissária soviética Ninotchka, para convencê-la que o capitalismo é bom e tem as suas recompensas. O empresário pinta uma realidade surrealista, justificando que qualquer um pode ser explorado sem nenhum sentimento de culpa.

Ele o tinha feito com um compositor russo e o faz agora com Ninotchka. Diz a ela que a criação de terceiros pode ser aproveitada, citando peças clássicas e compositores que “cederam” suas músicas para compositores populares, e que ninguém se importa com isso.

O filme pinta um retrato absurdo da indústria do cinema americano, que contradiz o Studio System, esquema no qual muitas vidas foram arruinadas, e que serviu exclusivamente para enriquecer os magnatas do cinema.

Sendo interpretado à risca, o filme chegaria a ser nojento, mas, no entanto, a música de Cole Porter, as anedotas do roteiro, algumas das quais típicas do sarcasmo americano anticomunista, e a presença de um elenco de qualidade, tornam o resultado divertido e palatável para qualquer cinéfilo. Basta não levar o roteiro do filme e os diálogos a sério!

A construção de cenários em roteiros absurdos continua até hoje, com a enxurrada de super heróis que amenizam a castração do público norte americano, e me arriscaria a dizer, da plateia mais jovem que ainda não encontrou os seus caminhos na vida. No final, é uma exploração como qualquer outra.

O cinema, como arte escapista saudável, transporta a plateia para mundos imaginários, tem as suas raízes na fantasia da lanterna mágica. Quem poderá culpa-lo se uma pessoa ou um grupo resolver usa-lo para ganhar dinheiro e alienar o público?

Na prática, o cinema pode ser usado como uma mídia para fins escusos. Ele foi usado para pura propaganda durante toda a segunda guerra mundial, por causa da sua força visual sugestiva. Mas, felizmente, ele nunca se restringiu a isso, e não foi a única força manipuladora colocada em prática até hoje. Ao lado dele estão aí até hoje veículos de massa, capazes de fazer o mesmo efeito. Só que hoje, na mídia da Internet, se fala em “influenciador(a)” ao invés de manipulador(a). Quem tem a percepção disso e quer tirar vantagem de alguma coisa, vai se aproveitar até os fins dos nossos dias, nada tendo a haver com a natureza do veículo onde isso é feito.

Não sei quanto a você, leitor, mas eu prefiro ver cinema na sua plenitude de beleza estética, e coleciono filmes sem precisar sublimar a manipulação. Porque o cinema é, sem dúvida, uma importante forma de arte, talvez a mais importante do século que passou, e quem sabe conhece-la como tal lhe dará o valor que ela merece!

Quem passou pela adolescência que eu passei, levou anos desfrutando o que existiu de melhor em cinema, e das salas que infelizmente não foram preservadas, que ficaram somente na nossa memória. Quem viveu viu, quem não viveu perdeu! Outrolado_

. . .

 

Cinemas de rua: não há nada que se compare a eles!

 

Cinemas de rua com 70 mm

 

Homenagem a Orion Jardim de Faria, pioneiro de cinema

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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