O interesse pelas gravações analógicas estereofônicas originais

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram
Share on pocket

Na década de 1960 muitos elepês ainda eram lançados em mono. A recuperação e preservação dos originais, com os métodos modernos, tem se tornado essencial para fãs de música e colecionadores.

 

Eu era adolescente começando a se interessar muito por Jazz, quando Oscar Peterson e seu trio gravaram o disco We Get Requests para a Verve em 1964. Duas das faixas ali contadas são dois agora clássicos da Bossa Nova, compostos por Tom Jobim. É fato histórico a franca admiração dos músicos de Jazz pela música do Tom e de vários de seus contemporâneos. Inicialmente, muitos desses músicos tocaram o novo estilo de forma desajeitada, principalmente no que se refere à batida da bateria, inédita até então, mas nada disso os desanimou para continuar admirando tudo aquilo que lhes chegava ao alcance desde o início do movimento bossa novista, vindo das nossas praias. A adesão de músicos de Jazz à Bossa Nova é, até hoje, impressionante!

Na década de 1960, um número maior de discos gravados era lançado em MONO. Daí o interesse posterior de qualquer colecionador dedicado, e que viveu esta época, em conseguir resgatar a versão estereofônica original dessas gravações.

Eu tive esse disco em várias versões, a última delas em SACD multicanal, editado pela Analogue Productions. O selo sempre faz um esforço em recorrer às fitas originais para o processo de remasterização, usadas inclusive para prensar elepês caríssimos. Em We Get Requests eles tiveram acesso à master de 3 canais da primeira geração, chamada de “alpha tape”, ou seja a fita magnética onde foi feita a primeira captura definitiva do som do disco. A caixa da fita alfa é mostrada na parte interna do estojo:

 

As gravações estereofônicas na indústria fonográfica começaram com dois canais, indo depois para três canais, seguindo para quatro canais, oito, etc., tudo isso durante um longo período de tempo. Esse disco já é da época de três canais, e foi gravado nos estúdios da RCA em Nova York. A remasterização para DSD e para elepê foi feita no estúdio especializado da Sterling Sound, para todas as edições da Analogue Productions.

We Get Requests foi lançado na década de 1960 em elepês mono e estéreo. Na época, o canal central era algumas vezes, usado para a mixagem do disco mono, como nos discos clássicos com orquestra sinfônica, mas aqui se vê que apenas o piano de Oscar Peterson está localizado no canal central, com o baterista Ed Thigpen no canal esquerdo e o grande contrabaixista Ray Brown no canal direito.

O disco é bem gravado, mas mostra algumas limitações ao ambiente analógico, que perduraram por vários anos. Para o fã de Jazz a gravação em si não poderia ser melhor, e a versão mais recente em SACD um privilégio para fãs e audiófilos. Na prática, porém, a versão em CD também soa muito próxima à do SACD, e assim qualquer um pode ouvir o disco sem ter a sensação de estar perdendo em qualidade de áudio. Evidentemente, só irá notar isso quem tiver a sorte de ter ambas as versões ou quem, neste caso, tocar a trilha CD do SACD híbrido.

A propósito de Oscar Peterson e outras dezenas de músicos que se aventuraram na Bossa Nova

Quando, no concerto de Montreal, Tom Jobim, sentado ao piano, mencionou que o “the great, great Oscar Peterson” havia tocado Wave de forma insuperável e que ele, naquele momento, estaria “ousando” executar a própria música com brilho pelo menos próximo, eu me lembrei de quando o notório pianista canadense gravou Wave para a MPS, em 1970, no álbum “Motions And Emotions”. Naquele mesmo ano, Peterson gravou também “Tristeza On Piano”, no qual, além da música título, tocou Triste, do Tom.

 

Tom Jobim era um cara muito engraçado, sarcástico ou irônico às vezes. Sabia como ninguém dizer aquilo que os seus interlocutores não gostariam de ouvir, quando importunado com perguntas descabidas. E, neste caso, seduzindo a plateia com um comentário que, em absoluto, não era verdade. Tom havia gravado o magnifico e hoje antológico álbum Wave, para a A&M Records, em 1967, começando com a música título.

No álbum da MPS, que tem a arranjos e regência de Claus Ogerman, importante colaborador de muitas gravações do Tom, ao tocar Wave Oscar Peterson começa a improvisar, levanta voo e não aterrissa nunca mais, nem com o esforço do maestro arranjador.

Eis aí uma coisa que eu sempre notei a respeito do fascínio de muitos músicos de Jazz pela Bossa Nova, que viram nela uma fonte inesgotável de inspiração para o que o músico de Jazz sempre teve talento para fazer: improvisar. Mas, é justamente aí que mora o perigo do músico se afastar demais da linha melódica, adulterando o seu conteúdo e deixando de lado a poesia das harmonias que os inspirou. Pois, se alguma coisa realmente nova (sem trocadilho) a Bossa Nova teve foi a de juntar emoções de diversos matizes, advindas na mesma música. E acho, até hoje, que foi isso, em última análise, o que tanto atraiu os músicos de Jazz veteranos para correr atrás dos músicos e compositores bossanovistas que aportaram na América em 1962.

Em uma de suas entrevistas, o músico compositor Roberto Menescal declara que quando a sua turma chegou em 1962 em Nova York, já no aeroporto eles viram vários músicos importantes de Jazz, em especial Gerry Mulligan, sem saber que aqueles músicos estavam lá para conhece-los. E ainda cita o espanto deles todos com norte-americanos cantando suas músicas em português. Isso, obviamente, foi resultado do desconhecimento aqui de que Felix Grant, discotecário local, já havia divulgado a música no rádio, fato esse, aliás, omitido nos painéis da exposição dos 60 anos da Bossa Nova.

Um ex-colega de turma, que tocava violão e que viveu na América na década de 1960, me contou um dia que ao ter contato com músicos de Jazz, percebeu logo que eles tinham muita dificuldade em assimilar a batida da Bossa Nova. Mas, isso ele não precisava ter me dito, porque esta limitação é notória e bastante evidente na maioria das gravações de Bossa Nova nesta época, começando com o disco Jazz Samba, de Stan Getz e Charlie Byrd, e reparem que este último veio aqui conhecer de perto os músicos do movimentos.

Nada disso nunca me causou surpresa, porque a variação da batida e as harmonias complexas da Bossa Nova são ambas muito difíceis de entender por quem nada tinha a ver com isso antes. O espírito lúdico das composições, principalmente aquelas do Tom, tenho certeza de que foram inicialmente difíceis de serem assimiladas, apesar da aparente simplicidade melódica.

A própria batida lenta dessas músicas seria bastante para inspirar qualquer outro músico. O equívoco inicial ouvido nas primeiras gravações americanas, salvo melhor juízo, foi o de achar que aquilo ainda era algo chegado ao samba tradicional, mais conhecido na América, antes da Bossa Nova chegar lá, quando na realidade a Bossa Nova já havia subvertido este mesmo samba, para irritação de pessoas ligadas a ele.

Quando Rita Lee disse em uma de suas músicas que “Sucesso no estrangeiro Ainda é Carmem Miranda” ela não poderia estar mais enganada. A Bossa Nova fez os estrangeiros esquecer tudo isso. Carmem Miranda foi injustamente explorada e parodiada durante a sua trajetória em solo norte-americano, só foi útil enquanto enriqueceu empresários e estúdios. A Bossa Nova nunca, que eu saiba, foi parodiada, e se manteve até hoje como a música romântica e lírica de referência, não só na América como no resto do mundo. É notável, por exemplo, a paixão dos japoneses pela Bossa Nova, foi de lá que eu consegui importantes reedições de discos dos Cariocas e do Tamba Trio, coisa que nunca aconteceu por aqui.

Outro aspecto relevante é o da variação da batida, constante mais proeminentemente nas gravações dos trios, como o Tamba ou o Som Três, por exemplo, e aí sim se vê um elo sólido com o Jazz, que o pessoal lá de fora acabou dizendo que aquela música era o “Brazilian Jazz”. Na minha opinião, não era mesmo. O fato de pegar emprestado ou “citar”, como se diz na gíria musical, música de outro estilo nunca irá mudar a estrutura da música que se está tocando.

Nada impede, é claro que eu possa ouvir Jazz dentro da Bossa Nova, e gostar do que estou ouvindo, e vice-versa, o que, aliás, me mostra inequivocamente como a segunda influenciou a primeira, e não o contrário, como alguns exegetas afirmam.

As fusões de gêneros de música nem sempre dão certo, mas aqui neste caso, a simbiose supera todas as diferenças. Por causa disso, nada mais natural do que músicos de Jazz tocarem Bossa Nova, e o fazem até hoje, e os nossos improvisando como se fossem eles mesmos naturais do outro gênero.

A preservação fonográfica é essencial para a manutenção da memória

Eu sempre fui radicalmente contra um técnico colocar as mãos em uma fita analógica de um acervo e sair “ajeitando” o resultado da conversão para digital com o uso de processadores que artificializam este resultado, como, por exemplo, aplicando limitadores ou conversores!

Muitas vezes é preferível manter o ruído dessas fitas, porque assim se pode ouvi-las integralmente, tal como elas foram originalmente gravadas. Uma das noções que eu aprendi no passado distante, quando restaurava os meus elepês, foi a de que às vezes, dependendo do ruído a ser eliminado, é melhor deixa-lo em paz do que eliminá-lo com distorção da onda. A aplicação de qualquer filtro é acompanhada, no programa editor, da opção de ouvir uma prévia do resultado, e em muitos casos alterar a configuração do filtro de modo a evitar distorcer o conteúdo. Portanto, todo cuidado na restauração de um material de áudio é pouco.

Estúdios especializados, como o acima citado Sterling Sound, têm sido responsáveis por restaurações de matrizes consideradas importantes, mas nem sempre quem ouve gosta do resultado. Steve Hoffman é um desses restauradores com grande e justificada reputação perante audiófilos. Mas, basta acessar o seu fórum que se lê opiniões as mais diversas e contraditórias a este respeito, e não somente dos trabalhos dele.

No final, o que mais importa é o esforço de recuperação e preservação dos fonogramas, muitos deles cujos originais nunca mais viram a luz do dia, ou foram perdidos ou deteriorados pelo armazenamento em ambiente hostil.

Fitas magnéticas podem durar uma eternidade, mas elas são, por natureza, frágeis e de preservação complicada. Até mesmo as fitas de gravações digitais devem ser preservadas. Décadas atrás constatou-se que várias delas estavam apagando nos arquivos, e se fez necessário recuperar o que ainda não havia sido perdido.

Nossos ouvidos agradecem. Quem, como eu, cresceu ouvindo MONO, irá agradecer mais ainda! Porque a gravação fonográfica estereofônica dá, mesmo com as muitas limitações do início, outra dimensão à música gravada! Outrolado_

. . .

Gravação antigas de rock: do som mono ao multicanal

 

Muito à Vontade, de João Donato, é uma joia da Bossa Nova

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram
Share on pocket

Mais lidas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *