A minha vida de estudante com Silvia Sachs Rabello

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram
Share on pocket

Conheci Silvia Sachs Rabello durante a época da faculdade que cursamos juntos. Ela já não está mais entre nós, deixando para trás o Labo Cine, empresa de preservação de filmes na qual exerceu os seus últimos anos de vida na profissão.

 

Mais alguns dias e o falecimento de Silvia Rabello, filha do lendário engenheiro de som da Philips e da CBS Sylvio Rabello, completará um ano.

O distanciamento entre amigos é cruel. Em outubro de 2003, um seminário sobre restauração de filmes, apresentado pelo diretor de fotografia de Orson Welles Gary Graver, me colocou frente a frente com a Silvia Rabello.

Eu já estava saindo, quando ela me interpelou no corredor e me disse que achava que ela me conhecia. Foi neste momento que eu me fixei no rosto da minha confrontante e perguntei “Silvia?”. Era ela mesmo. O envelhecimento nos tornou provisoriamente dois ilustres desconhecidos. Eu teria preferido que não tivesse sido assim.

Curiosamente, o destino nos fez nos reencontrarmos em um evento sobre restauração de filmes, ao qual eu fui atraído por conta da presença de Gary Graver. Na época, eu estava, sei lá, uns 40 anos afastado de assuntos de cinema, e não sabia que existia uma entidade com o nome de Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPCB), dedicada ao assunto de preservação de filmes brasileiros. Tinha sido esta entidade que organizara o encontro com Graver, em uma espécie de reunião anual.

Depois que Graver falou, entra em cena outro personagem que eu também não conhecia: Francisco Sergio Moreira, conhecido pelos íntimos como “Chico do MAM”, em virtude de ele ter trabalhado em restaurações na cinemateca do museu por vários anos e em importantes trabalhos de preservação.

Com o espaço aberto para perguntas, e ainda impressionado com o trabalho exibido em vídeo pelo Chico, eu perguntei a ele (olha só que ingenuidade) se ele pretendia transpor o trabalho para vídeo de alta definição, ao que ele me responde com certa arrogância que “no Brasil não existe alta definição”.

Notem que isso era fim de 2003. A Sony havia lançado uma TV de tubo, pesadíssima (cerca de 124 kg), que eu acabara de receber de Manaus, por ingerência de engenheiros meus conhecidos que trabalhavam nos laboratórios da empresa. O sistema de transmissão em HDTV já estava pronto. Então, eu fui obrigado a discordar. Aquele aparelho Sony foi inclusive usado pela Globo, para experimentar rodar novelas em alta definição. Mas, o meu comentário contestatório foi mal recebido, sabe Deus por que.

Foi o meu encontro com a Silvia que elucidou tudo: depois que nós nos reapresentamos, ela me mostra um cartão do Labo Cine, onde ela era “CEO”, e aí eu notei que o Chico estava ao lado dela. E ela comentou comigo que já havia tocado neste assunto, de fazer o Labo Cine partir para a telecinagem digital de películas. E eu aproveitei o encontro, pedi desculpas ao Chico, e afirmei o que todo hobbyista já sabia desde a década de 1990: que os negativos restaurados vinham sido sistematicamente transferidos para vídeos com a melhor resolução possível! Na era digital, criou-se o conceito de “Intermediário Digital”, que tornou este processo obrigatório na indústria do cinema em casa, fora a preservação propriamente dita.

A nossa vida de estudante

Em 1971, eu entrei para a Faculdade de Farmácia da UFRJ, com o objetivo de estudar Bioquímica e perseguir a ideia de trabalhar neste campo de pesquisa. A Silvia estava uma turma na frente, e nós todos nos enturmamos rapidamente, em grande parte por causa do então movimento estudantil contra a ditadura militar.

Eu assumi o cineclube da faculdade, mas fiz amizade com a Silvia por um fato insólito. Quando ela soube que eu era fã de Jazz e de Bossa Nova, ela me contou que o pai dela esteve envolvido nisso, na sua fase de engenheiro da Philips, e como eu tinha hábito de ler contracapa de elepês, eu reconheci na hora o nome dele: Sylvio Rabello!

E foi inevitável que logo depois eu ter sido convidado para conhecer a sua família, e fui por todos muito bem recebido. Fiquei encantado com o Sylvio, embora tenha tido pouca chance de conversar com ele. Em dias de hoje, eu teria proposto a ele um depoimento, mas naquela época?

O Sylvio era uma pessoa profundamente ligada à música e à eletrônica, assuntos com os quais eu me identifico. Construiu o primeiro estúdio da Philips com o ferro de soldar na mão. Gravou, com a ajuda do técnico de som Célio Martins, praticamente todos os discos importantes da Bossa Nova daquele período.

Um dia, o meu amplificador pifou, a Silvia contou para ele, e ele prontamente me emprestou um amplificador montado por ele, a partir de um kit americano, cuja marca eu não me lembro, e foi assim que eu consegui “aturar” a ausência do meu aparelho, que ficou dias incontáveis no conserto, aguardando peças.

Silvia e eu fizemos uma amizade por conta da música e principalmente do cinema. Nós dois matamos aula para assistir “A Classe Operária Vai Ao Paraíso”, na primeira sessão do primeiro dia de exibição, dias antes de o filme ser proibido pela censura e a cópia retirada do Cine Paissandu.

Eu perdi a conta dos encontros musicais entre a Silvia e eu, incluindo um concerto infame do grande trompetista Miles Davis, no Theatro Municipal. A mãe da Silvia era uma senhora alemã adorável, Dona Lilo, que ao saber que eu gostava de Jazz me mostrou e emprestou uma série de elepês que ela colecionava.

Mas, ao fim de 1972 nossos encontros foram diminuindo. A minha vida mudou e a dela também, como é comum nesses tempos. Uma vez formada, a Silvia se recusou a exercer a profissão de farmacêutica, indústria ou análises clínicas eu não me lembro, fez concurso para o Banco do Brasil e passou. Eu, por outro lado, declinei o quarto ano da faculdade, comecei a dar aula (obrigatória para carreira acadêmica) e me dediquei totalmente ao trabalho de bioquímica médica, em cujo departamento eu depois continuei a minha vida profissional.

O hiato pós-acadêmico

Somente em 2003, naquele encontro inusitado, que eu soube que a Silvia era CEO do Labo Cine. Depois eu soube que não era meramente para constar, porque a Silvia que eu conheci nunca vi dar bola para dinheiro ou fama. A sua participação na indústria extrapolou a sua colaboração na preservação de filmes, foi também, segundo vi, atuante no Sindicato da Indústria Audio Visual, do qual foi presidente.

 

Em 2003, nós planejamos um reencontro, que nunca aconteceu. A Silvia argumentava que precisava arrumar um tempo, porque estava sempre viajando, mas eu percebi que era uma desculpa elegante para adiar o que ela provavelmente não queria mais.

Eu, por acaso, tenho um amigo que tinha outro amigo que trabalhou no Labo Cine, que me dava notícias ocasionalmente. Eu até imaginei que iria encontrá-la em Conservatória, por ocasião de algum Cinemúsica, onde ela havia ido, mas também sem nada neste sentido acontecer.

Não me lembro quem no ano passado me avisou que a Silvia havia morrido, e eu tomei um susto. Depois soube que ela tinha sido vítima de uma doença degenerativa gravíssima, que a dominou em curto espaço de tempo.

No dia 15 de janeiro de 2018 Silvia nos deixou aos 66 anos de idade. Desnecessário dizer que na minha memória passou um filme, e mais uma vez eu lamentei não ter tido a chance de reencontrá-la mais uma vez.

Curiosamente, o Chico do MAM faleceu em janeiro de 2016, com 64 anos, em circunstâncias misteriosas, e Gary Graver desapareceu bem antes, em 2006, com 68 anos de idade.

O Labo Cine se rendeu à falta de mercado de projeção de película e fechou as portas em janeiro de 2015, bem antes de a Silvia e o Chico morrerem.

É um bocado chato a gente ver conhecidos, amigos ou parentes irem embora, principalmente naqueles casos onde não se tem sequer uma chance de dizer adeus. E nós, que sobrevivemos por mais algum tempo, nos sentimos um pouco mais solitários.

A juventude e o idealismo em alguns de nós jamais desaparece, e mesmo não tendo estado com a Silvia durante tantos anos, e de não ter tido a chance de acompanhar a sua vida pós-faculdade, eu tenho certeza de que essas qualidades estavam presentes em toda a sua vida.

Depois que alguém se vai, não é incomum neste país sem preservação de memória, deixar a pessoa de lado para nunca mais saber do que ela contribuiu na vida.

Alguns personagens viram nome de qualquer coisa, mas isso muito pouco contribui para que outros saibam o quanto aquela pessoa significou na profissão ou na vida familiar, e eu espero que a minha querida ex-amiga Silvia nunca seja esquecida pelos seus pares. Outrolado_

. . .

Leia também:

Concerto da OSB em noite inesquecível para os amantes do cinema

E o seu projeto?

 

O dia em que vi a minha caveira

 

Resguardando “Chovendo na Roseira”

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram
Share on pocket

Mais lidas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *